‘Filme proibido’ da Xuxa ganha versão nos livros

Livro faz releitura do cinema de Walter Hugo Khouri, de ‘Noite Vazia’ e do ‘filme proibido’ de Xuxa.

A obra “O cinema de Walter Hugo Khouri” de Donny Correia lançada pela Cosac aborda a obra filosófica e urbana de um dos principais cineastas brasileiros.

De acordo com Rogério Duprat, compositor das trilhas dos filmes de seu primo, Walter Hugo Khouri, o cineasta tinha um problema – ser artista. No entanto, no livro ‘O cinema de Walter Hugo Khouri’ de Donny Correia (editora Cosac), é o primeiro a fazer um panorama da carreira do autor a partir de uma extensa pesquisa em acervo.

Seja com “Noite Vazia”, de 1964, sua obra mais conhecida, sobre dois homens que tentam vencer a melancolia da metrópole perambulando entre bares e acompanhantes, seja com “Amor, Estranho Amor”, de 1982, o tal filme que Xuxa barrou por décadas pelas cenas em que seduz um rapaz.

Cena do filme ‘Amor, Estranho Amor’, de 1982, dirigido por Walter Hugo Khouri – Acervo Walter Hugo Khouri/Divulg

O capítulo

Nas páginas sobre “Amor, Estranho Amor”, lê-se como o filme foi um sucesso na época de seu lançamento, com mais de 1 milhão de espectadores, e que Xuxa, na verdade, só entrou no filme pela insistência de Pelé —amigo de Khouri e que à época namorava a jovem modelo gaúcha.

“A polêmica toda criada pós-filme não se sustenta quando você analisa o que ele é dentro da poética do Khouri e na época em que foi lançado”, diz Correia.

O pesquisador busca redimir a produção como um drama político e erótico, que cutuca o regime militar ao abordar os conchavos entre políticos paulistas e mineiros num grande bordel, às vésperas do golpe de Getúlio Vargas, em 1937. Tudo sob a perspectiva do jovem Marcelo, filho de uma das prostitutas, vivida por Vera Fischer.

O capítulo sobre a obra é um dos mais extensos do volume, que mistura crítica e análises psicanalíticas, além de entrevistas e arquivos guardados pelo próprio Khouri e hoje preservados pelo seu neto, Wagner, num apartamento. “Meu avô deixou um material extremamente organizado”, diz ele, que separou roteiros, cartas, fotos e recortes de jornal por produção.

Carreira de Walter Hugo Khouri

Capa do livro de Donny Correia; o primeiro estudo crítico completo sobre a obra do cineasta paulista Walter Hugo Khouri (1929-2003)

Foi a partir de 1987, com a volta do filme aos cinemas e com o lançamento da fita VHS, que tudo azedou. Xuxa havia se tornado a rainha dos baixinhos na Globo e embargou a obra junto a Aníbal Massaini Neto, produtor do filme, já que seu contrato não citava a distribuição em outras mídias. Difamada pelas supostas cenas de pedofilia, a obra sumiu das salas e das prateleiras das locadoras e só voltou a circular em 2021.

Este é apenas um dos episódios que enfocam não o Khouri artista, mas o trabalhador de cinema, que enfrentou as precariedades do mercado nacional para realizar uma obra numerosa —26 longas entre 1951 e 1998, feitos à sua imagem e semelhança.

Obra, no caso, que espelhou um paulistano —da avenida Paulista para baixo, como frisava— que começou no metiê no final dos anos 1940, na companhia Vera Cruz, ganhou experiência em aventuras como “Fronteiras do Inferno” e o noir “Estranho Encontro”, antes de mergulhar num projeto autoral dedicado a cutucar questões mais existenciais do que politizadas.

Longe das camadas populares, ganhou a fama de alienado ou imitador de Bergman e Antonioni, em oposição às posturas de filmes do cinema novo, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. “Enquanto o Corisco de Glauber Rocha hipnotizava o europeu que sofria de remorso histórico, Khouri mostrava que a burguesia é um câncer que se manifesta em qualquer parte do mundo”, afirma Correia.

Numa época em que a elite do cinema nacional buscava sua identidade nos rincões do país, Khouri fez em “Noite Vazia” —seu maior sucesso, apresentado no Festival de Cannes de 1964— uma crônica do espírito paulistano blasé, de luto permanente, um sentimento que, para Correia, já se entrevê na obra de José Medina, pioneiro do cinema mudo.

Marcado na história

De certa forma, os caminhos que o cineasta tomou para sobreviver na indústria são, também, o que dificultam o acesso à obra hoje. Apenas sete obras pertencem à família, segundo Wagner, o neto. Mesmo com boas cópias sob a guarda da Cinemateca Brasileira, a digitalização é um processo caro.

Tema de uma mostra ampla em 2023, Khouri ocasionalmente volta à programação do espaço em São Paulo. Há algum tempo, a família planejou um lançamento em DVD, mas, na prática, se tornou inviável sem um parceiro que ajudasse nos custos.

“Vários dos filmes estão no YouTube. Só não mandei tirar porque eu não tenho como oferecer uma alternativa. Apesar da infração de direitos autorais, pelo menos a pessoa consegue ver numa qualidade ruim. Está cumprindo uma função social”, afirma Wagner.

Apesar das quase 400 páginas, o livro de Correia deixa alguns tesouros para o futuro. O professor prepara um volume separado para destrinchar os filmes de terror “As Filhas do Fogo” e “O Anjo da Noite”, enquanto Wagner planeja um livro de fotografias do avô e uma exposição desse material, com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro.

“Em quase todos os filmes, ele tirava fotos de cena e reunia tudo naqueles álbuns de casamento de antigamente. Só do ‘Noite Vazia’ são três, recontando o filme em diferentes ângulos, com cenas inéditas, atores que não entraram”, diz o neto. “E a maioria delas em ótimo estado, considerando que têm 70 anos.”

Por: Henrique Artuni

Emanuel Reis e Letícia Panta

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